quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Machado, além do romantismo

Jefferson Cano

É ponto mais que pacífico, para a historiografia literária, a divisão da produção ficcional de Machado de Assis em duas fases, uma dita romântica e outra realista. O próprio Machado, ao escrever, em 1905, uma advertência à reedição de Ressurreição, havia se referido a esse romance como pertencente à “primeira fase da minha vida literária”. Não era, porém, do próprio Machado os qualificativos de romântico ou realista que lhe seriam atribuídos pela crítica posterior.

Na verdade, se é inegável o sentido de ruptura com o romantismo que Memórias Póstumas de Brás Cubas assume no conjunto da obra de Machado, também é – ou devia ser – igualmente conhecida a sua recusa ao realismo, explicitada em 1878 (dois anos antes de Brás Cubas), numa resenha sobre O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, que acabava de ser publicado. “Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética” – diria Machado naquela ocasião, exortando aos jovens que não se deixassem “seduzir por uma doutrina caduca, embora no verdor dos anos”. Mais tarde, a notória virada nos rumos da produção machadiana faria com que ele acabasse identificado a tudo que tão violentamente condenara.

Não é, porém, o nosso objetivo nesse momento discutir a relação de Machado com o realismo, mas chamar a atenção para o fato de que, ainda antes de refutar a estética realista, Machado também já podia olhar com certo distanciamento para sua herança romântica, à qual seria assimilada toda a produção de sua chamada primeira fase. Embora espalhasse seus escritos pela imprensa desde o final da década de 1850, Machado estrearia em livro com uma coletânea de contos publicada em 1870, os Contos Fluminenses. Em 1872, seria a vez da estréia em romances, com Ressurreição, e no ano seguinte sairia uma segunda coletânea de contos, Histórias da Meia-Noite, publicada ao mesmo tempo em que Machado preparava seu segundo romance, A mão e a luva, que sairia em 1874. Ao publicar as Histórias da Meia-Noite, Machado já possuía todo o distanciamento necessário em relação à estética romântica para fazer a sua crítica, como de fato fazia. E os seus leitores contemporâneos já percebiam que o alcance dessa crítica ia além dos estilos literários em voga na época, como se lia numa resenha anônima publicada no jornal A Reforma, em 18 de novembro de 1873: “Não perde o Sr. Machado de Assis a ocasião que se lhe apresenta de censurar o lado ridículo da sociedade”.